Simbologia de Kali, a Mãe Divina

AVISO
    Nós, leitores ocidentais, estamos singularmente despreparados para entender o quanto o pensamento oriental pode ser profundo e sublime. Não obstante nossos condicionamentos culturais, há no entanto momentos em que a leitura simples de obras com o Bhagavad-Gita consegue trazer uma luz para quem consegue penetrar em seu sentido. Sugerimos que o leitor leia nossa apresentação do Hinduísmo, antes de iniciar a leitura deste texto.
    Encontrarmos um comentário interessante em na página "deuses e deusas" num dos sites de um cristão fundamentalista. Nesta página (de um site já extinto), seu autor fazia considerações sobre a forma como Kali é comumente representada, e chega à seguinte conclusão: "Sem comentários!".
    Eis o que L. escreveu:
    "Kali 
    Nome de culto da deusa durga, esposa de Shiva. Comumente é representada por uma figura feminina lambuzada de sangue, tendo grandes presas em forma de dentes, e uma língua protusa que goteja sangue. Usa um colar com caveiras, brincos com pedaços de cadáveres, e está enrolada com serpentes. Tem quatro braços, simbolizando domínio sobre todas as coisas finitas.
    Uma mão segura uma espada, a segunda segura uma cabeça humana decapitada, a terceira é acreditada entre os devotos como estando a remover os medos, e a quarta é freqüentemente interpretada como concedendo felicidade. Finalmente, como trevas absolutas, devorando tudo que existe, por vezes é também desenhada como estando por cima do cadáver de Shiva, o qual, como a grinalda de caveiras, simboliza os restos da existência finita. No passado os adoradores de Kali a satisfaziam com sacrifícios humanos"
[Sem comentários]

    Se não fosse pelo tom geral do site deste sr., chegaríamos à conclusão de que ao escrever "sem comentários" seu autor estaria confessando sua incapacidade de tecer comentários quanto à deusa. No entanto, considerando seu objetivo de provar que apenas sua religião é legítima, e que ele simplesmente é incapaz de se utilizar do tipo de lógica em seus argumentos, fica evidente que seu objetivo é dizer que a simples descrição de Kali bastaria para comprovar o quanto esta representação seria repulsiva.
    Pois bem, acontece que esta é a interpretação de alguém que se julga superior aos demais e capaz de interpretar assuntos que nunca estudou, pois estaria sendo "guiado por Deus" ao criar suas páginas. Mas qual seria a interpretação de um Hindu?
    Vejamos o que nos diz Sananda Lal Gosh, com o auxílio de Sri Mahanam Brata Brahmachari:

    Embora os Cristãos geralmente chamem Deus de "Pai", os Hindus desenvolveram também o conceito de "Mãe Divina" (*). Em nossa vida humana normalmente nós desenvolvemos um carinho especial por nossa mãe, pois ela é rápida em perdoar, e nos ama incondicionalmente. Ela responde instantaneamente às necessidades de seus filhos independentemente deles "merecerem" ou não.
      Kali representa shakti, o poder ou energia criativa, do Espírito Imanifesto. Ela é o símbolo de tudo que já existiu, que existe agora, e que existirá no futuro. Criação, preservação e destruição são seus Poderes manifestando-se.  A qualidade destrutiva não é negativa. Assim como a semente "morre" e produz a planta, e a criança "morre" amadurecendo no adulto, a qualidade aniquiladora do poder criativo de Deus renova as manifestações exteriores do Espírito indestrutível, para sua expressão e evolução contínua. Antes de mais nada, o Espírito é bom e misericordioso. Devemos nos lembrar sempre que o Poder Criativo destrói formas antigas e inúteis, apenas para renovar e preservar a forma do universo. Assim, no aspecto de dois lados de Kali nós temos uma representação adequada da Natureza. Sua forma cósmica é revelada na meditação.
      Kali tem quatro braços. Seus dois braços direitos representam Seu poder de criar universos e conceder bençãos e salvação a Seus devotos. Seus dois braços esquerdos seguram uma cimitarra e uma cabeça decapitada, respectivamente. Representam Seu poder de conservar o cosmos e causar sua dissolução no Espírito quando termina Sua dança de criação. Nesta imagem nós temos uma bela síntese das forças opostos da Natureza. Nenhum outro símbolo representa melhor tanto o amor incondicional de Deus, quanto as leis inexoráveis da criação.
      Kali tem uma guirlanda, feita de um colar de cinquenta cabeças humanas; as cabeças geralmente representam o poder da sabedoria, e especificamente, os cinquenta sons que formam a linguagem do Sânscrito. Os antigos rishis (sábios) da Índia enraizaram a antiga linguagem no primeiro som da criação, Aum, a "Palavra" cósmica ou vibração criadora. Da ciência das vibrações sonoras, eles aperfeiçoaram mantras (palavras em Sânscrito corretamente entoadas) para conseguir mudanças grandes e desejadas na criação. Assim, o colar de cabeças humanas representa o conhecimento e o poder inerente na Criação.
      O cabelo flutuante da Deusa lembra uma cortina, a "tela de maya" (ilusão, dualidade) além da qual está oculta a Inteligência unificadora, a essência do Espírito.
      A cor de Kali é negra. A criação se originou no reino da "luminosidade sem luz e escura escuridão" (**). Como Kali representa a força criativa primordial, Sua cor natural é negra. No princípio, a criação não tinha forma. A cor negra representa o que não tem forma, e também é a ausência de cores, ou seja: ausência de variedade. Os vários aspectos da verdade, toda a sabedoria, todas as religiões, são assim totalmente absorvidos e unificados na Mãe que tem todo o conhecimento, que tudo penetra.
      Sua forma nua sugere a infinidade.
      Sua cintura é cingida por mãos humanas, simbolizando as voltas sem fim das reencarnações produtoras de desejos, que resultam das ações executadas sob a influência da ilusão. Os desejos humanos para satisfazer os sentidos perseguem-no até mesmo além dos portais da morte, para trazê-lo de volta à existência material mais e mais vezes. Assim a Mãe Infinita é circundada pela atividade humana ignorante e iludida.
      Kali tem três olhos, representando o sol, lua, e fogo, cada qual uma fonte de luz destruindo a escuridão. Onipresente na criação, a Mãe observa através de seus três olhos o passado, o presente e o futuro; e na luz destruidora da ignorância de seus olhos, Ela reflete, para que o homem veja, beleza, verdade, e felicidade.
      O peito da Mãe alimenta a criação com o doce leite da energia sustentadora cósmica; e para Seus filhos que buscam a Deus, Ela dá o sabor de Sua abençoada presença.
      Com dentes brancos brilhantes, a Deusa morde sua língua vermelha. Vermelho é a cor de Rajas, a qualidade ativadora da Natureza; o branco representa Sattva, Sua qualidade de discriminação, purificação e elevação. O impulso ativador deve ser
controlado pela sabedoria discriminativa.
      No turbilhão de Sua dança da criação, um pé da Mãe Cósmica atinge o peito de Shiva (Espírito) adormecido que está a Seus pés. Durante a criação, falando-se relativamente, o Espírito torna-se servidor das leis da Natureza; Kali reina suprema. Mas no
momento em que a Natureza toca o Espírito, Ela é subjugada.
      A mãe é frequentemente adorada em terrenos de crematórios. Ela reside lá para receber aqueles que vem descansar nEla. A morte é respeitada como Seu toque transfigurador que remove as dores, as tristezas, as ansiedades, e concede a liberdade e a paz.
      Embora pareça ser terrível observar-se a forma de Kali - pois Seu poder não faz acordos com o mal - Seu sorriso revela um coração que é a essência da misericórdia.
      Como energia criativa do Espírito, Ela é a Mãe do universo, e de todos os seres humanos. Seu poder é insuperável. E ainda Seu amor, suave como uma flor, concede o benevelonte toque do amor materno a todos.
      Na adoração do Ser Supremo em seu aspecto de Mãe, o Hindu não pensa nela em sua forma cósmica, mas na maternidade humana e universal. Quando nós A vemos em todas as mães como a Mãe de todos, todo ser humano torna-se nosso irmão. O devoto sacrifica seu egoísmo insignificante a Seus pés e vive o ideal de irmandade. Quando a paixão pela auto-gratificação é transformada em amor divino através do amor pela Mãe, o resultado é a unidade entre os seres humanos. E esta é nossa maior necessidade hoje."

(*) As maiores manifestações de Deus para seus filhos, disse Paramahansa Yogananda, são como Pai, Mãe, Amigo, Bem-Amado.
(**) no original: "lightless light and darkness dark"