Falsa Noção de Deus
Aqui temos um pequeno trecho da obra de Caio Miranda intitulada "Ajude a Curar sua Neurose", publicada em 1964. Agora, verifiquem por si mesmos: a maior parte do que este pioneiro da divulgação do Yoga no Brasil escreveu, é atual nos dias de hoje.
De todas as errôneas noções que nos são transmitidas na infância, nenhuma mais prejudicial e nefasta que a "falsa noção de Deus". Dela decorre a maioria das demais idéias erradas a respeito da vida, da morte, da moral, do pecado e do mundo, como também o rosário interminável das doenças que assolam a humanidade.
Sendo o medo, em qualquer das suas modalidades, o agente principal dos desequilíbrios psíquicos e a causa profunda das neuroses, devemos atribuir ao errado temor a Deus quase toda a infelicidade humana, já que o homem é mais a sua realidade íntima e silenciosa que a sua manifestação exterior. Nesse particular urge uma providência imediata e radical, pois que os homens, sobretudo os jovens, tomando consciência do quanto foram até aqui enganados com relação à Divindade, passaram a uma reação violenta e obstinada que terminará por banir do coração humano toda e qualquer relação com a verdade divina. Do mesmo modo que a criança, ao compreender as balelas da cegonha e do Papai Noel, reage com os exageros da incredulidade e dos desmandos, o Ser adulto, ao verificar o engano em que laborava sobre a conceituação de Deus, descamba para o materialismo, o ceticismo e a descrença generalizada.
No entanto, jamais poderá a criatura viver apartada do Criador, já que nela se revelam e expressam as condições d'Aquele. E assim, somente após sofrimentos sem conta, dores e desenganos, quando já não mais pode cumprir com o rendimento máximo sua missão no mundo, é o Ser levado ao reencontro com sua própria realidade básica e divina, descobrindo em si mesmo o Deus Universal. Mas enquanto isso não se verifica, o caminho fica semeado de desgraças e destruições. Não haveria exagero em afirmar-se que tudo o que o homem faz de errado, inclusive as guerras e predações, as maldades e espoliações, como também os prejuízos e dôres que engendra para si mesmo, são meras consequências da ignorância com relação à sua própria condição divina. E essa ignorância só poderá ser dissipada com o conhecimento exato da natureza de Deus, do qual resulta o auto-conhecimento integral. O "conhece-te a ti mesmo" da velha filosofia é um caminho integral para a auto-realização espiritual, quando então sentimos nada mais ser que simples ondas do Oceano Infinito da Vida, com efêmera individuação mas logo retornando ao manancial absoluto. Compreendemos então a verdade que o Homem não pode existir sem Deus, do qual é uma simples e passageira manifestação.
Essa clara noção nos exime definitivamente do mal, porque nos integra na fonte do Amor Puro, que nos faz ver em cada Ser um irmão verdadeiro, enquanto a falsa e perigosa idéia de um deus vingativo, cruel e rancoroso, nos torna também ferozes, enxergando em cada pessoa um inimigo, rival ou concorrente.
Enquanto o sentimento sublime da natureza real de Deus nos aproxima dos semelhantes e nos faz amá-los, a falsa noção deles nos separa e nos induz a odiá-los. É o que se vê, em todos os quadrantes do globo. Dirigentes religiosos que se comprazem em assistir monges se deixando queimar vivos, sacerdotes pregando do púlpito a extinção das demais religiões, brancos jogando bombas em igrejas onde crianças negras estão a rezar, autores de livros sobre YOGA que falam hipocritamente em amor mas tudo fazem por inveja, ódio e despeito, enquanto nos arsenais das chamadas grandes potências se vão incubando as bombas que assolarão a face da Terra em frações de segundos.
Dir-se-ia que o sangue inocente do Cristo correu em vão e que seu exemplo de pouco valeu, pois os altos dignitários eclesiásticos, de todas as religiões e credos, continuam em seus redoirados tronos, sustentados às costas de áulicos ilustres, perlustrando seus domínios e equilibrando à cabeça o massudo peso de mitras de ouro e pedras preciosas, enquanto milhões de crianças morrem de fome nos desvãos do mundo e outros tantos Seres humanos definham minados pela miséria e pelas enfermidades.
Se Jesus, a Luz do Mundo e a mais bela encarnação divina, voltasse à Terra, o que mais lhe agradaria? - o espetáculo funambulesco da riqueza sacerdotal ou a simplicidade de um yógui, sem nada possuir de seu mas definitivamente integrado na Luz Infinita?
A riqueza moral e a elevação espiritual do homem não estão nas vestes nem nos ornamentos que acrescenta ao corpo e ao vestuário. Só se preocupa em demonstrar externamente fôrça e poderio quem não os possui realmente. O Rei revestido de pompa e dando demonstrações de crueldade para se impor e ser temido é característica primitiva, quando a humanidade jazia ainda mergulhada nas trevas da mais completa ignorância. Nos dias de hoje a simplicidade de Gandhi foi mais poderosa que o fausto da coroa da Inglaterra, com suas esquadras e canhões. É justo que se despoje Deus dos seus atributos de maldade e vingança, para revesti-Lo de sua verdadeira roupagem: O AMOR INFINITO, sentindo-O como o Estado de Amor.
O conceito de DEUS como estado, e não como um Ser, é inacessível à maioria da humanidade. Todavia, não reside nisso o perigo maior da falsa noção sôbre a sua natureza, mas no fato de Lhe atribuírem, todas as religiões obscurantistas, características de crueldade, vilania, injustiça e amor pela vingança.
Porque cruel é um deus que castiga inexoravelmente suas criaturas quando poderia fazê-las isentas de pecado. Vil é um deus que semeia de tentações a vida dos seus filhos, quando Lhe seria possível criá-los infensos às seduções. Injusto é um deus que concede a graça a alguns, arbitrariamente, e abandona outros à sua própria sorte. E ignóbil é um deus que se vinga dos míseros mortais pelo simples fato de serem estes fiéis à sua humana condição.
Porque o pecado, a tentação, o afastamento da graça e a imperfeição não foram pedidos nem escolhidos pelo homem ao surgir sobre a face da Terra. Ao contrário, tudo isso lhe foi dado pelo próprio deus, que assim passou a deleitar-se com a miséria daqueles que já criou miseráveis, segundo os que acreditam naquela espécie de divindade.
Que julgamento faria um homem de braços decepados a respeito dos seus pais, ao saber que sua desgraça fôra causada por lhe haverem estes deliberadamente, quando criança, posto nas mãos uma dinamite pare brincar?
E note-se que a distância do pai humano para o próprio filho deve ser necessária e infinitamente menor daquela que separa Deus do homem. Por mais amoroso que se mostre um pai humano para com a "carne de sue carne", tal amor será sempre menor que o amor do Criador pare com suas criaturas.
Como conciliar então a idéia de um Deus infinitamente misericordioso com a atuação cruel e vingativa do deus ensinado desde a meninice? Note-se ainda que as religiões ortodoxas defendem a onipresença de Deus não como um estado de amor-potencial presente em todas as coisas e Seres, mas como uma vigilância invisível e austera, infatigável e sórdida, sôbre a conduta objetiva e subjetiva dos homens. É evidente que tal atuação da divindade termina por nos conduzir às portas da insegurança psíquica, já que os atributos humanos, inclusive as solicitações biológicas, a curteza da visão espiritual, a pobreza da mente, a imperfeição dos sentidos e a inaptidão para vislumbrar a verdade, são também condições impostas pela própria divindade.
Tal confusão vai semeando na alma humana uma profunda instabilidade. Como proceder, afinal? É evidente que o homem se livra desses tormentos quando consegue descobrir, nas profundezas do Ser, o Deus tal qual é.
Mas até atingir esse ponto, terá de pagar pesado tributo.
E raramente consegue a libertação definitiva por intermédio das religiões existentes. Porque se o conseguisse, não haveria infelizes nem neuróticos no mundo, já que as religiões sempre existiram, desde o início das Eras. Entretanto, o que se verifica é que, a despeito de aumentar sempre o número de fiéis que murmuram preces sobre a face do planeta, apesar dos rituais e liturgias cada vez mais se espalharem pelas sociedades e aglomerações humanas, não obstante se multiplicarem os templos na superfície do globo, cada vez mais desajustada e infeliz se mostra a humanidade.
Para a criança, os pais são Deus. Ela não estranha, portando, e até aceita com naturalidade, a idéia de um deus vingativo e mau, caso seus pais assim o sejam também. Que se poder esperar de uma criatura que reconhece nos pais e em Deus as mais sórdidas condições de maldade, injustiça e prepotência, se natural e espontaneamente sente que aqueles são os maiores exemplos a seguir?
A invenção do demônio constitui também uma das consequências da falsa noção de Deus e portanto da educação errada que nos transmitiram. Ensinando que o sexo é pecaminoso e que toda a desgraça humana decorre do "pecado original", impediram-nos de aceitar as imposições genésicas como coisa pura, legítima e natural. Se somos "feitos à imagem e semelhança de Deus" devemos estar alheios a tais solicitações. Note-se que em toda a teologia convencional jamais se falou na Mãe, limitando-se a gênese do Universo a referir o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Houve sempre um cuidado extremo em evitar-se a idéia de fecundação hetero-sexual na zona divina, do mesmo modo que no nascimento do Cristo. Todavia, para o Deus todo-poderoso nada teria sido mais fácil que fazer o Filho aparecer no mundo sem haver nascido de ventre materno, como com tantas outras figuras o tem feito. O exagero clerical preferiu fecundar a Virgem pelo Espírito Santo do que declarar divino, como realmente é, o ato sexual.
Na verdade, nós é que podemos acanalhar a atividade genésica, tornando-a uma prática bastarda na qual a mulher ficaria relegada à condição de simples máquina de dar prazer ao homem, ou este de instrumento de gôzo da mulher.
Sujeito ao empuxo poderoso do instinto sexual, sentindo-o em toda a sua extensão, foi o religioso obrigado a atribuí-lo a alguma força ou entidade exterior, já que dentro do Ser só deveriam existir energias divinas. Inventou então o diabo, e logo o fez tão poderoso quanto o próprio Deus, já que possuia forças suficientes para anular os efeitos purificadores dos rituais, práticas e liturgias evocativas da divindade.
Em alguns conventos da Idade Média e mesmo dos tempos modernos, quando tal idéia estava inteiramente cristalizada na mente dos sacerdotes e das freiras, o "demônio" provocou verdadeiras devastações. Religiosos haviam, de ambos os sexos, que até davam nomes aos diabos tentadores, conhecendo-os perfeitamente, na forma e no modo de agir.
Demônios e outras entidades maléficas significam tão-somente o instinto de defesa do psiquismo humano contra todas aquelas energias e solicitações que, brotando das profundezas do Ser, não deveriam ser aceitas como coisas naturais e lícitas.