Céu, Inferno, Disney e Iron Maiden

Céu e inferno, existem?

      Certa vez, em tempos idos, certo homem vestido em roupas militares que se aproximou de Hakuni (Mestre Zen) e lhe perguntou: "Mestre, o Céu e o Inferno existem realmente?"
      O mestre queria responder afirmativamente, mas sabia que isto daria ao homem uma impressão falsa. Com toda certeza o homem pensava usando o paradigma comum que define a existência do Paraíso e do Inferno como lugares para almas no pós-vida. O mestre sabia o que devia ser feito para vencer esta idéia falsa.
      "O que você faz na vida?", ele perguntou.
      "Eu sou um general", o militar respondeu.
      O mestre começou a gargalhar. "Que idiota daria a você o comando de um exército? Você se parece muito mais com um açougueiro!"
      O general, furioso, gritou e sacou sua espada. Ele estava pronto para matar instantaneamente o mestre indefeso.
      "Eis aí as portas do Inferno", disse o mestre. Estas palavras simples pararam o poderoso general e o fizeram cair em si; o militar compreendeu que o mestre arriscou sua vida para poder ensinar-lhe uma verdade da maneira mais eficiente possível.
      "Perdoe-me, mestre, pelo que eu estava pronto a fazer." Ele sentia simultaneamente gratidão, deslumbramento e vergonha.
      "Eis aí as portas do Paraíso", disse o mestre. 


    Esta é uma lenda interessante. Ela nos conta que mesmo em tempos antigos, os sábios já tinham seu entendimento espiritual evoluído a um ponto em que diziam que Céu e Inferno são estados da mente, ao invés de lugares. Evidentemente nem todos compartilham esta visão, é óbvio. Nós sempre tivemos descrições vivas de Céu e Inferno como lugares. Algumas criaturas iluminadas reconheciam-nas como metáforas coloridas, mas muitos as aceitavam literalmente. Na escala cósmica das coisas, não faz muito tempo que a maioria dos seres humanos começou a pensar no Céu como algo além das nuvens e no Inferno como um lugar subterrâneo, nalguma caverna escura. Os detalhes variam, mas a idéia geral permaneceu a mesma. Asgard, Valhalla, Olimpo, Hades, Inferno, Purgatório - todos sendo lugares em que alguém iria após a morte de seu corpo físico. Para muitos pensadores da idade moderna, a idéia de Céu e Inferno como locais específicos já não serve mais. Ainda apreciamos as lendas do pós-vida de vez em quando, mas não acreditamos necessariamente que tais histórias correspondam à realidade. Ao mesmo tempo, ainda há muitos que realmente acreditam. Sem muito esforço, podemos encontrar gente que simplesmente não consegue se livrar da noção da existência de Céu e Inferno em algum lugar. Alguns Fundamentalistas Cristãos, entre outros, mencionarão imediatamente algumas passagens da Bíblia para "provar" que Céu e Inferno são tão reais quanto a loja da esquina. George Bush tornou-se notícia ao expressar sua crença de que aqueles que não aceitassem Cristo como seu salvador estariam condenados ao Inferno.
    Há algum tempo um grupo de extremistas religiosos protestou em frente a uma loja da Disney no Centro-Oeste norte-americano. Podemos achar isto surpreendente. O que os produtos Disney teriam de ofensivo? De que estas pessoas estariam reclamando?
    Como se verificou, eles protestavam contra as figuras do desenho animado "Górgulas" da Disney. Seus personagens principais tinham asas semelhantes à dos morcegos, caudas, chifres, e esporas. Criar brinquedos com tais imagens seria o equivalente a promover a imagem de demônios e a causa de Satã. Os empregados da loja passaram a receber ameaças de morte. Ao gerente da loja foi dito, como fato consumado, que ele estava destinado a queimar por toda a eternidade. Aparentemente o pessoal levou a idéia de Inferno muito a sério. Nesta era do "politicamente correto", é tentador aceitarmos o "cada cabeça uma sentença". Não podemos dizer que gente como essa, que crê numa interpretação literal da Bíblia, tem direito a sua própria opinião? Ela não é tão válida quanto qualquer outra? Talvez, mas um olhar mais atento demonstra numerosos problemas na lógica da interpretação literal. O problema principal é que os horrores do inferno e os prazeres do céu são completamente subjetivos. O que é horrivel a alguém pode não ser assim tão mau a outro; o que é maravilhoso ou agradável para mim pode não o ser para você. Por exemplo, considere o caso de um masoquista. Tal indivíduo vai ao Céu ou ao Inferno? O Céu para ele não seria um lugar em que ele experimentaria uma grande variedade de dores deliciosas? O Inferno para ele não seria um lugar onde ele não sofresse dor alguma? Isto não seria uma inversão completa do conceito habitual?
    Outra idéia, igualmente capenga, está na dificuldade de conciliar a existencia do Inferno com a natureza completamente amorosa de Deus. Se Deus realmente ama Seus filhos, por que Ele sujeitaria mesmo o mais pecador deles ao sofrimento eterno? Por que não apenas aprisiona-lo, sem uma tortura grotesca? A rejeição do Céu e a perda da liberdade por toda a eternidade não seria uma punição suficiente? Vejam nosso sistema carcerário. O que fazemos atualmente com nossos piores criminosos? Frequentemente nos contentamos em simplesmente afastá-los da sociedade; sentimos que não há necessidade de puni-los com sofrimento. Este não era necessariamente o caso em uma época mais primitiva (ou, convenhamos, em algumas partes do mundo atual). Em alguma parte do desenvolvimento da humanidade, a sociedade não hesitava em torturar os prisioneiros, e vários aparelhos cruéis foram criados exatamente para isso. Não bastava executar um criminoso; a sede de sangue exigia a morte com o máximo de dor e terror - daí o Iron Maiden. (Iron Maiden de Nuremberg, não a banda de heavy metal. Usado por volta de 1515, o aparelho tinha espinhos de tamanhos variados dentro de sua tampa. Ao ser fechado lentamente sobre sua vítima, os espinhos penetravam várias partes do corpo, apenas o suficiente para provocar dores terríveis sem matar imediatamente. Os espinhos com o segundo tamanho mais curto ficavam exatamente sobre os globos oculares, para que a vítima perdesse seus olhos imediatamente antes que o último espinho perfurasse seu coração, finalmente matando-a.)
    A maioria de nós gostaria de crer que como espécie, nós já superamos esta fase horrível. Hoje tratamos mesmo o pior dos piores criminosos de um modo humano. Se condenamos alguém à morte, nós o fazemos do modo mais rápido e indolor possível. Comparado a nosso sistema criado por humanos, um Céu literal apresentando as punições mais horríveis não é comparavelmente mais selvagem e primitivo? Se Deus é infinitamente maior que os seres humanos em todos os aspectos, será que Sua misericórdia e compaixão também não ultrapassariam em muito a nossa? Se mesmo os seres humanos, imperfeitos e nascidos do pecado, podem estar acima de tal crueldade na punição, então por que Deus - o máximo da perfeição - também não deveria estar?
    Olhando sob este aspecto, rapidamente concluímos que se Deus realmente é a expressão do amor e da compaixão, Ele nunca permitiria a existência de um Inferno como sendo um lugar onde os pecadores queimassem para sempre. Parece mais provável que o Inferno seja um conceito inventado por seres humanos, com o propósito específico de provocar medo em outros seres humanos.
    A natureza bárbara e desumana do Inferno é simplesmente um reflexo do caráter dos criadores destes mitos.
    A chave da realização está no uso correto do raciocínio. Aqueles que ainda se apegam à velha escola são os que não se preocuparam em seguir mentalmente todas as ramificações e implicações de sua crença.
    Quando voce refletir profundamente sobre isto, poderá deixar de lado a tolice da ignorância e da selvageria, e contemplar a verdade inevitável. Céu e Inferno existem dentro de cada um de nós. Esta é a única maneira possível. A qualquer momento nós tempos o potencial para experimentar um dos extremos ou qualquer ponto entre eles. Nós não somos elevados ao Céu nem lançados ao Inferno depois de morrermos; nós mesmos nos transportamos para lá, e embora a maioria de nós não o perceba, temos a capacidade de entrar ou sair de lá à vontade.
    Esqueça toda esta tolice sobre dores e torturas eternas. Nós somos almas maduras e espíritos evoluídos que não precisam mais crer em histórias assustadoras. Não precisamos de uma moralidade ditada para nós e que nos submeta com ameaças de punição; nossa própria moralidade surge de nosso interior, dirigida por nosso desejo natural de encontrarmos harmonia, amor, e unidade. Sendo este o caso, nossas próprias consciências, seres interiores, lições kármicas, e mestres espirituais nos orientam de maneiras muitíssimo mais eficientes do que o medo jamais o fará.
    Os sábios estavam certos sobre Céu e Inferno. Novamente, vemos como a sabedoria antiga ainda pode estar quilômetros adiante das - e às vezes até se antecipando às - nossas crenças "modernas".

Texto original em:
http://www.truetao.org/living/200003.htm
http://www.gservo.com/html/heaven_and_hell.html